Valor Econômico publica matéria sobre o jornalista e editor do “The Wall Street Journal”, Barney Kilgore

21 de setembro de 2010

O Valor Econômico publicou hoje, dia 21 de Setembro de 2010, uma matéria assinada por Matías M. Molina, na seção EU e Livros, que fala sobre a trajetória de Barney Kilgore no “The Wall Street Journal”. Com uma visão muito a frente do seu tempo, Kilgore redirecionou e transformou o jornalismo de sua época, trazendo grandes mudanças que vemos até hoje presentes.

Veja abaixo a matéria na íntegra.

Retrato de um gênio, inventor do jornalismo moderno
Por Matías M. Molina, para o Valor, de São Paulo
21/09/2010

“Restless Genius: Barney Kilgore, The Wall Street Journal and the Invention of Modern Journalism”
Richard J. Tofel. St. Martin Press. 271 páginas, US$ 25,95

Os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial quando, num ataque de surpresa, em 7 de dezembro de 1941, um domingo, a aviação japonesa afundou a frota americana ancorada em Pearl Harbour, no Havaí. No dia seguinte, na primeira página, “The Wall Street Journal”, em lugar de dar os detalhes do ataque, como fizeram os outros jornais e as emissoras de rádio, optou por explicar a seus leitores o que o esforço de guerra representaria para a economia dos Estados Unidos e para as empresas.

“A guerra com o Japão” – dizia a matéria – “significa uma revolução industrial nos Estados Unidos. A máquina produtiva americana será reorientada com um único objetivo: produzir o máximo das coisas necessárias para derrotar o inimigo.”

“Será um processo brutal. Implica num estímulo intenso, quase fantástico para algumas indústrias; racionamento estrito para outras; liquidação inevitável e completa para umas poucas.”

“A guerra com o Japão será uma guerra de grandes distâncias. (…) Isso significa quantidades ilimitadas de navios e balas de canhão, bombardeiros e bombas, petróleo, gasolina…”

As informações sobre o ataque japonês estavam nas páginas internas. Mas a manchete, o destaque principal do “Journal”, olhava para o futuro. Adotava um modelo de jornalismo que é hoje ainda mais atual do que naquela época, mas que a maioria dos jornais reluta em adotar.

Essa matéria, com foco diferente ao do resto da imprensa, era o exemplo mais visível da revolução que estava sendo implantada no “Journal” por Bernard (Barney) Kilgore, que tinha assumido o comando da redação alguns meses antes.

Com 33 anos, era um dos jornalistas financeiros de maior prestígio nos Estados Unidos. Ficara conhecido por uma coluna, “Dear George”, na qual, em estilo epistolar e fácil de entender, explicava a um amigo fictício as mudanças que o presidente Roosevelt estava introduzindo na economia. Sua fama aumentou quando, numa entrevista coletiva à imprensa, o presidente disse: “Há um artigo hoje no ‘Wall Street Journal’, de Bernard Kilgore, que, realmente, todos os que escrevem sobre questões de finanças e bônus e moeda e temas semelhantes deveriam ler, porque é muito bom. Eu não concordo com tudo que está escrito, mas é uma boa matéria. É uma matéria analítica sobre um tema extremamente difícil – a questão da emissão de moeda para enfrentar as obrigações do governo. Acho que Mr. Kilgore poderia ter ido um pouco além do que foi.”

Em anos seguintes, Roosevelt disse de novo que, se os jornalistas quisessem realmente compreender a situação, deveriam ler o artigo de Mr. Kilgore. “Foi um bom trabalho”, comentou. Os elogios aumentam em importância quando se sabe que Kilgore e o “Journal” eram conservadores e contrários ao New Deal, a política de recuperação econômica adotada por Roosevelt. Kilgore aproveitou para conseguir algumas entrevistas exclusivas.

Sua escolha para editar o “Journal” não parece óbvia. Suas raízes estavam no Meio Oeste, em Indiana, longe do mundo das instituições da Costa Leste, e não estudou em nenhuma das universidades de elite, mas na DePauw, Indiana, que não era considerada entre as melhores. Além disso, ele se sentia desconfortável em Nova York, a sede da Dow Jones, a empresa editora. No entanto, a escolha não poderia ser mais apropriada. Curiosamente, durante várias décadas, a maioria dos dirigentes da empresa tinha nascido em Indiana ou estudado na DePauw. Isso levou um crítico da revista “The New Yorker” a escrever que “The Wall Street Journal”, apesar de seu nome, é culturalmente uma instituição do Meio Oeste.

A publicação que Kilgore começava a editar tinha perdido a metade de seus leitores durante a depressão dos anos 1930 e estava orientada principalmente, como seu nome indicava, para orientar os investidores do mercado de ações. Para atrair mais leitores sem perder os antigos, Kilgore abriu o foco dos assuntos e o transformou num jornal de negócios, atento às mudanças na sociedade, com ênfase em matérias analíticas, muito preocupado com a precisão das informações e com a palavra escrita.

O “Journal” passou a ser um dos diários mais bem escritos dos Estados Unidos. Kilgore desencorajou o estilo conhecido como “pirâmide invertida”, segundo o qual, no primeiro parágrafo de uma informação deve constar “o que”, “quem”, “onde”, “quando” e “por quê”. Era precisamente o oposto do que ele queria. A não ser que se tratasse de dar uma notícia urgente, achava aquela fórmula maçante e desencorajadora da leitura, além de não propiciar uma análise da informação. Ele preferia que as reportagens começassem com algum detalhe atraente, uma história estimulante ou com uma frase provocadora. Dava ênfase à narrativa, a histórias bem contadas e bem escritas. As informações não deveriam concentrar-se apenas no que aconteceu ontem, mas principalmente em mostrar as tendências. Segundo ele, o leitor queria saber do “ontem”, sim, mas principalmente do “amanhã”.

Os repórteres não deveriam escrever para os banqueiros, mas para os clientes dos banqueiros, os depositantes – cujo número é muito maior – e tinham que tornar compreensíveis para esses leitores as intrincadas questões financeiras. Essa preocupação em traduzir complexas questões técnicas em linguagem acessível para os leigos é, até hoje, uma das razões do sucesso do “Journal”.

Não publicava fotografias. As únicas ilustrações eram tabelas, gráficos e desenhos do rosto de algumas pessoas, feitos a “bico de pena”. Partia-se do princípio de que os leitores não buscavam imagens, mas informações, análises e opiniões. Posteriormente, o tabu da fotografia foi rompido, mas o “Journal” é discreto no uso da fotografia e os desenhos a “bico de pena” continuam sendo uma de suas marcas registradas. Kilgore acrescentou também uma charge diária na página editorial, com o título de “Pepper and Salt” (Pimenta e Sal), que, na verdade, tem pouco de uma coisa ou da outra.

Ele fez uma primeira página totalmente diferente da do resto dos jornais. As notícias do dia anterior passaram a ser publicadas, em notas curtas, em duas colunas do lado esquerdo, sob o título “What’s News”. O resto da página era ocupado com matérias que poucas vezes tinham informações de fatos recentes. Muitas delas tratavam de temas atemporais e poderiam ter sido publicadas uma semana antes ou dois meses depois. Outras eram análises de temas da atualidade, mas não necessariamente de “ontem”.

Ao desviar o foco da Wall Street e ampliá-lo significativamente, cresceu o interesse pela leitura do “Journal”. Para atender esse mercado em expansão, Kilgore, nomeado presidente, abriu uma série de pontos de impressão em todo o país, com o objetivo de chegar até o leitor no mesmo dia de manhã. Foi o primeiro jornal nacional dos Estados Unidos. O investimento foi considerável, mas a circulação aumentou exponencialmente. A taxa de renovação das assinaturas, um indício da fidelidade do leitor, era superior a 70%, um índice bastante elevado.

Houve um confronto involuntário com a General Motors, que aumentou seu prestígio. O “Journal” tinha publicado informações corretas, mas inconvenientes, que desagradaram a empresa. Quando se negou a pedir as desculpas exigidas, a GM retirou os anúncios e se recusou a atender os repórteres. A revista “Advertising Age” foi a primeira a divulgar o cancelamento da publicidade. Depois, “The New York Times” publicou uma reportagem com o título: “GM põe ‘The Wall Street Journal’ na lista negra”. Kilgore divulgou um comunicado, cuja conclusão era: “Acho difícil acreditar que isso representa a política da alta administração da General Motors, porque não penso que a General Motors usaria esse tipo de pressão para expressar sua desaprovação da política editorial ou informativa de qualquer jornal.” No fim, a GM recuou. Voltou a anunciar e a passar normalmente informações à redação. O jornal reforçou sua imagem de não dobrar-se às pressões dos anunciantes.

Notícias e opinião estão rigorosamente separadas no “Journal”. Kilgore era conservador e as páginas de opinião do “Journal” são tradicionalmente conservadoras, defendendo com frequência princípios de extrema direita e martelando os liberais. No entanto, as páginas de informação são conhecidas pelo equilíbrio e isenção. O jornal, nesse ponto, chega às raias da esquizofrenia, mas se manteve independente.

No fim dos anos 1950, Kilgore foi consultado durante uma tentativa de recuperar “The New York Herald Tribune”, um diário conservador de boa qualidade, que estava perdendo dinheiro e a briga com “The New York Times”. Qualquer editor de jornal tem a ganhar se anotar seus conselhos. Ele observou que um jornal tem que adotar uma linha e criar a impressão de que sabe do que está falando antes de ir para a banca. Quando alguém sugeriu criar um excelente departamento de promoção, Kilgore disse que a prioridade era que os leitores falassem do jornal. Advertiu que editar o “Herald Tribune” com um olho no “Times”, seu concorrente, não era suficiente e, em última instância, seria contraproducente.

Segundo ele, o “Herald Tribune” não era um mau jornal, mas, a julgar pela maior parte de seu conteúdo, podia ser publicado em Filadélfia, Washington ou Chicago, como na cidade de Nova York. Sugeriu investir em pesquisa para saber mais sobre os seus leitores – atuais e potenciais. Segundo ele, a pesquisa não daria todas as respostas, mas ajudaria a redação com material em que se basear. Aconselhou também a livrar-se do pessoal improdutivo, fazendo os cortes de uma vez: “Meu pai me ensinou que é um erro cortar o rabo do gato uma polegada de cada vez. Isso não ajuda o gato”. Segundo ele, o jornal deveria ter uma apresentação sóbria e não carregar nas manchetes. As fotos deveriam ser usadas com parcimônia, mas provocando um forte impacto emocional, e enfatizou a importância de fazer sumários das informações. Propôs, em suma, um jornal compacto. “É melhor ter um bom regimento que uma divisão fraca.” Seus conselhos não foram seguidos. O “Herald” adotou um caminho diferente e fechou anos depois.

Kilgore lançou no começo dos anos 1960 um jornal semanal, “The National Observer”. Uma publicação generalista. O foco era informar o leitor sobre “the business-of-living” – as questões a enfrentar ao longo da vida. Tinha uma apresentação gráfica sóbria e elegante. Mas era um jornal na frente de seu tempo. Como diz Tofel, antecipou-se ao “USA Today” como jornal nacional de temas gerais, dava as informações de forma sucinta, mas com uma variedade de temas pouco comuns nos jornais da época, como assuntos pessoais, economia doméstica, temas profissionais. Depois de alguns problemas iniciais de distribuição, conseguiu uma circulação de 500 mil exemplares e nas pesquisas era apontado como a terceira publicação mais admirada dos Estados Unidos, atrás do “Journal” e do “New York Times”. Mas, apesar de sua indiscutível qualidade editorial, não conseguiu sobreviver. As agências de publicidade acharam que o jornal não tinha foco como veículo para colocar anúncios e a empresa não conseguiu demonstrar que o tinha. Foi fechado depois da morte de Kilgore – uma derrota brilhante e amarga. Hoje, uma revista com perfil semelhante, “The Week”, é considerada um dos fenômenos da imprensa-americana.

A circulação do “Journal” cresceu dos 32 mil exemplares em 1941, quando Kilgore assumiu a redação, até quase um milhão em 1967, quando ele morreu, aos 59 anos. Nos anos seguintes, continuou aumentando, passando dos dois milhões. Não há dúvidas de que, se é hoje o diário de maior circulação dos Estados Unidos e um dos mais influentes do mundo, isso se deve, em grande parte, às mudanças e à orientação implantadas por Kilgore. Mas ele é praticamente desconhecido, mesmo nos Estados Unidos.

Essa ignorância é, de certa maneira, compreensível. As figuras mais lembradas pela história da imprensa mundial não são os diretores dos jornais, mas os proprietários. Nomes como Hearst, Pulitzer, Ochs, Sulzberger, Luce, nos Estados Unidos; Scott, Northcliffe, Rothermere, Beaverbrook, Maxwell, Murdoch, na Inglaterra; Hersant, Prouvost, na França. Hubert Beuve-Méry, diretor de Le Monde, poderia ser uma exceção; na verdade, ele era um importante acionista e agia, na prática, como proprietário. Passa à história da imprensa quem determina a estratégia de uma publicação, não quem a executa.

No caso do “Journal”, foi Kilgore quem traçou a estratégia para o futuro, não a família Bancroft, a proprietária, que lhe deu total liberdade. Kilgore recebeu o devido crédito nos livros escritos sobre a história do “Journal”, mas só no ano passado ele foi objeto de uma curta biografia, que destaca seu temperamento irrequieto. Ainda é pouco. Uma pessoa que não o esqueceu foi Rupert Murdoch. Quando sua empresa, a News Corp., comprou o “Journal”, em 2007, ele disse que manteria o legado de jornalismo independente de Kilgore. O ceticismo foi geral. Mas o fato é que, se Murdoch pagou um preço muito superior ao do mercado, deveu-se precisamente a que “The Wall Street Journal” seguiu o legado de Kilgore.

Matías M. Molina escreveu o livro “Os Melhores Jornais do Mundo” e prepara um trabalho sobre os jornais brasileiros.

E-mail: matias.molina@terra.com.br